Experimento do piche: há 98 anos em curso, revela os limites da matéria e do tempo científico

Um funil de vidro guarda um mistério há quase um século: o piche, apesar da aparência sólida, é líquido. Com apenas nove gotas caídas desde 1930, o experimento mais longo da história está em andamento na Austrália e foi reconhecido pelo Guinness. A iniciativa começou como uma aula prática e hoje inspira estudos sobre viscosidade, paciência científica e limites da percepção humana.
Publicado por Maria Eduarda Peres em Ciência dia 14/05/2025

O experimento do piche é realizado desde 1927 na Universidade de Queensland, na Austrália, e se tornou o mais longo da história da ciência moderna. Durante quase um século, um funil com uma substância escura e espessa ficou sob observação contínua para demonstrar um conceito aparentemente simples: materiais podem se comportar de maneiras inesperadas quando observados em escalas de tempo distintas.

Pontos Principais:

  • Experimento iniciado em 1927 para demonstrar que o piche é líquido.
  • Desde 1930, apenas nove gotas caíram de um funil de vidro.
  • Viscosidade do piche é 230 bilhões de vezes maior que a da água.
  • Experimento entrou para o Guinness Book como o mais longo da história.
Imagine esperar 10 anos pra ver uma gota cair. Parece loucura, mas é exatamente isso que cientistas vêm fazendo desde 1930, na Austrália - reprodução / domínio público
Imagine esperar 10 anos pra ver uma gota cair. Parece loucura, mas é exatamente isso que cientistas vêm fazendo desde 1930, na Austrália – reprodução / domínio público

O material em questão é o piche, também chamado de betume, que é um subproduto da destilação do petróleo ou da madeira. Apesar de ter aparência sólida e quebradiça, ele é, tecnicamente, um líquido extremamente viscoso. O projeto foi iniciado pelo professor Thomas Parnell, que pretendia demonstrar a fluidez do piche de forma visual e direta para seus alunos.

A experiência consiste em deixar que o piche escorra lentamente por um funil de vidro até um recipiente inferior. O processo de escoamento é tão lento que, até o momento, apenas nove gotas caíram. A expectativa para a décima é projetada para ocorrer em algum momento da década de 2030. Desde 1930, o material escorre com intervalos de vários anos entre as gotas, sendo impossível observá-las a olho nu em tempo real.

O início e a estrutura do experimento

Thomas Parnell iniciou o experimento aquecendo o piche e despejando-o em um funil de vidro. O material permaneceu no funil por três anos, tempo necessário para garantir que estivesse completamente compactado e sem bolhas de ar. Em 1930, o bico do funil foi cortado, e o escoamento do líquido começou.

O objetivo era comprovar que, apesar de sua aparência sólida, o piche é de fato um líquido. Sua viscosidade é cerca de 230 bilhões de vezes maior que a da água, tornando o movimento praticamente imperceptível sem instrumentos de medição de longo prazo. O experimento segue até hoje, sem interrupções.

O recipiente permanece isolado em uma vitrine de acrílico, sob vigilância constante de câmeras e equipamentos que garantem o monitoramento científico da experiência. Com o passar dos anos, diferentes pesquisadores assumiram a responsabilidade pela continuidade do projeto.

Observações registradas e desafios técnicos

Até o ano de 2000, nenhuma gota havia sido registrada visualmente. Quando a oitava gota caiu, a câmera ainda não havia sido instalada. Na queda da nona gota, uma falha técnica impediu a captura da imagem, o que gerou frustração entre os responsáveis.

Somente em 2014 uma gota de piche foi filmada escorrendo em um experimento paralelo conduzido no Trinity College, em Dublin. Esse registro foi considerado o primeiro vídeo de uma gota de piche caindo em tempo real, mesmo que não tenha ocorrido na experiência original australiana.

O experimento principal em Queensland é atualmente supervisionado pelo professor Andrew White, que assumiu a curadoria após a morte de John Mainstone, físico que cuidou do projeto durante grande parte do século XX.

Reconhecimento científico e cultural

Em outubro de 2005, Parnell (já falecido) e Mainstone foram homenageados com o Prêmio Ig Nobel de Física, uma paródia ao Prêmio Nobel que celebra feitos científicos curiosos ou inusitados. O reconhecimento veio pelo ineditismo do experimento e sua longevidade.

Mais tarde, a experiência foi reconhecida pelo Guinness Book como o experimento científico contínuo mais longo do mundo. A marca histórica consolidou a relevância do projeto não apenas dentro da universidade, mas também na comunidade científica internacional.

O experimento também foi incorporado como estudo de caso em diversas disciplinas, servindo como exemplo de paciência científica, metodologia rigorosa e observação em escalas de tempo incomuns.

Função didática e impacto acadêmico

Ao longo de seus quase 100 anos de duração, o experimento do piche serviu como instrumento pedagógico. Estudantes de física e química o utilizam como exemplo para compreender melhor conceitos de fluidez, viscosidade, estados da matéria e comportamento de materiais.

Esse tipo de iniciativa mostra como a ciência pode ser usada para demonstrar princípios teóricos de forma visual, mesmo que lenta. O fato de ser possível medir o tempo de queda de cada gota cria uma oportunidade única para análise de dados em longo prazo.

Além disso, a experiência reforça a importância da observação contínua e do planejamento em experimentos científicos, especialmente aqueles voltados para fenômenos que ocorrem em escalas de tempo diferentes daquelas observadas no cotidiano.

Implicações na ciência dos materiais

A compreensão do comportamento do piche tem implicações práticas para a ciência dos materiais. Materiais com viscosidade extrema, como o piche, desafiam os conceitos clássicos de estados da matéria, especialmente quando analisados em diferentes escalas temporais.

O experimento reforça a ideia de que materiais podem mudar seu comportamento com o passar do tempo, mesmo sem alterações em sua composição química. Esse conceito pode ser aplicado em áreas como engenharia de materiais, geologia, petroquímica e indústria de polímeros.

A constatação de que o piche é um líquido extremamente viscoso amplia o entendimento científico sobre transições de fase, propriedades mecânicas e características dinâmicas de substâncias aparentemente estáveis.

Expectativas para o futuro

A próxima gota de piche pode cair durante a próxima década. A expectativa é que a queda seja registrada com precisão, utilizando os equipamentos de vigilância e gravação que foram instalados após os episódios frustrantes do passado.

A equipe atual trabalha para garantir que os registros sejam mantidos com segurança, de modo que futuras gerações possam continuar estudando os dados e comparando os intervalos entre as gotas ao longo do tempo.

Enquanto o experimento continua, novas questões surgem: será que a viscosidade se manterá constante? Será possível determinar variações devido a fatores ambientais? Essas perguntas permanecem em aberto.

Conclusão

O experimento do piche ultrapassou os limites do laboratório e se tornou parte da história da ciência moderna. Ele mostra que nem todo conhecimento depende de velocidade, e que o tempo, quando bem utilizado, também pode ser ferramenta de precisão.

Por sua duração e simplicidade, o projeto se destaca como um exemplo singular de como a paciência e a observação podem gerar resultados concretos, mesmo que em décadas. A ciência, nesse caso, não corre — ela escorre.

Enquanto a décima gota não cai, o funil permanece estático, mas o conhecimento que ele produz segue em expansão, gota a gota.

Fonte: Revistaforum, Olhardigital e Wikipedia.