Paradoxo da Tolerância: até onde uma sociedade aberta deve aceitar ideias intolerantes?

Nem toda convivência entre diferenças é harmônica. Em vez de partir do conceito de liberdade, essa reflexão parte de um exemplo simples e provocador: o que acontece quando opiniões intolerantes ganham espaço em uma sociedade tolerante? Com base na teoria de Karl Popper, o vídeo analisa como cosmovisões conflitantes podem ameaçar a própria liberdade de expressão e como esse dilema está presente nas relações pessoais e institucionais.
Publicado por Maria Eduarda Peres em Mundo dia 30/07/2025

O paradoxo da tolerância é uma ideia filosófica que ganhou relevância crescente nas últimas décadas, sobretudo em sociedades democráticas que buscam equilibrar liberdade de expressão com a manutenção de uma convivência social estável. O conceito parte da provocação central: até que ponto uma sociedade pode ou deve tolerar discursos e comportamentos intolerantes? A resposta imediata pode parecer óbvia, mas, ao ser desdobrada em implicações práticas, revela dilemas éticos, políticos e sociais de alta complexidade.

Pontos Principais:

  • Karl Popper propôs que a tolerância ilimitada pode destruir a própria liberdade.
  • Cosmovisões diferentes influenciam a forma como cada indivíduo entende o mundo.
  • Discursos intolerantes nem sempre são explícitos e podem crescer de forma silenciosa.
  • Estudos indicam que apenas a apreciação ativa das diferenças reduz a intolerância.

A proposta do paradoxo foi apresentada por Karl Popper, filósofo austríaco do século XX. Ele formulou a ideia a partir da percepção de que uma sociedade totalmente tolerante pode ser destruída por aqueles que se aproveitam dessa liberdade para promover a intolerância. Dessa forma, a defesa incondicional da liberdade pode, ironicamente, anular a própria liberdade. Essa tensão cria um impasse prático: se todos os discursos devem ser tolerados, mesmo os que pregam a eliminação de direitos de outros grupos, o risco é de a democracia ser corroída por dentro.

Esse dilema é ilustrado por analogias simples e eficazes. Uma delas propõe imaginar uma sociedade onde se defende prender pessoas que colocam açúcar no café. O exemplo, embora caricatural, é eficaz para mostrar como uma ideia absurda, se tolerada sem restrições, pode ganhar força, se normalizar e suprimir outras preferências e opiniões. O resultado não é apenas uma perda de liberdade individual, mas a imposição silenciosa de uma cosmovisão dominante sobre as demais.

Cosmovisão e os limites da percepção

A compreensão do paradoxo da tolerância passa pelo entendimento de um conceito central: cosmovisão. Cada pessoa nasce e cresce imersa em uma determinada maneira de interpretar o mundo. Essa estrutura de pensamento define como os indivíduos dão significado às experiências e influenciam, inclusive, o que consideram aceitável ou intolerável. A cosmovisão é moldada por fatores históricos, culturais, religiosos, econômicos e sociais.

Ao contrário da cultura, que lida com costumes, vestimentas e celebrações, a cosmovisão está relacionada aos valores atribuídos a esses costumes. Um mesmo evento cultural pode ser visto de formas completamente diferentes dependendo do conjunto de crenças e lentes interpretativas de cada pessoa. Essa divergência explica por que sociedades distintas entram em conflito mesmo quando partem de premissas aparentemente semelhantes.

A diversidade de cosmovisões é inevitável em sociedades abertas. No entanto, essa diversidade também cria desafios. Algumas formas de ver o mundo não apenas divergem, mas colidem frontalmente com os princípios fundamentais da convivência democrática. E é nesse ponto que se revela o dilema: como lidar com cosmovisões que, em sua essência, não admitem a existência de outras?

A fronteira entre tolerância e censura

A pergunta central do paradoxo se transforma em uma questão prática: até que ponto tolerar ideias intolerantes contribui ou ameaça a liberdade coletiva? É nesse ponto que o pensamento de Popper propõe que a tolerância não pode ser infinita. Ela precisa encontrar um ponto de ruptura para evitar sua própria destruição. No entanto, identificar esse limite exige critérios claros — e esse é o desafio.

Na prática institucional, são os poderes legislativo e judiciário que operam essas decisões. Leis são criadas para limitar manifestações que representem riscos diretos à integridade ou segurança social, como incitação ao crime ou discursos de ódio. Essas restrições visam impedir que o uso da palavra seja convertido em ferramenta de opressão.

Ainda assim, os limites da tolerância não se manifestam apenas por meio de leis ou censura estatal. Eles também se impõem no cotidiano por meio de pressões sociais, exclusões simbólicas e barreiras invisíveis à expressão. Pessoas se autocensuram, evitam dizer o que pensam ou se afastam de círculos sociais por divergências de opinião. A imposição silenciosa de uma única cosmovisão pode se dar de baixo para cima, sem qualquer mediação do Estado.

O exercício cotidiano da tolerância

O paradoxo da tolerância se manifesta de forma recorrente nas relações pessoais. Famílias, amizades e ambientes de trabalho frequentemente são atravessados por choques de cosmovisão. Quando uma dessas visões assume uma postura de negação das demais, a convivência se torna insustentável. Muitas vezes, o afastamento de alguém do convívio é uma forma prática e silenciosa de se posicionar diante de uma opinião considerada inaceitável.

Essa ruptura raramente é percebida pelas partes como intolerância. Cada um acredita estar sendo razoável dentro dos próprios critérios. A discordância, então, não gira em torno de argumentos racionais, mas de valores e visões de mundo que são, por definição, enraizados. E justamente por isso, o diálogo entre cosmovisões conflitantes é um dos maiores desafios para sociedades democráticas.

Em sociedades democráticas, cresce o debate sobre até onde vai a liberdade de expressão diante de ideias que podem ameaçar a convivência plural e pacífica entre grupos distintos.
Em sociedades democráticas, cresce o debate sobre até onde vai a liberdade de expressão diante de ideias que podem ameaçar a convivência plural e pacífica entre grupos distintos.

Em contextos de divergência, a convivência pacífica requer mais do que tolerância passiva. Estudos sociológicos e experimentos sociais têm apontado que apenas a apreciação ativa da diversidade é capaz de reduzir efetivamente o preconceito. Isso significa não apenas aceitar que o outro exista, mas valorizar sua presença como parte da construção social.

Modelos teóricos e pesquisas contemporâneas

A ciência social contemporânea tem buscado refinar os conceitos de tolerância, propondo novas categorias para além da dicotomia simples entre tolerância e intolerância. Um estudo de 2019 propôs um modelo baseado em três níveis: respeito, aceitação e apreciação. O primeiro nível implica reconhecer o outro sem necessariamente concordar com ele. O segundo, admitir a convivência. E o terceiro, considerar a presença do outro como benéfica.

A pesquisa identificou que apenas o último nível, a apreciação, gera mudanças reais na forma como grupos sociais diferentes se relacionam. O respeito e a aceitação, embora fundamentais, não bastam para evitar conflitos, exclusões ou intolerância silenciosa. São passos iniciais, mas não suficientes para a construção de uma sociedade verdadeiramente plural.

Outra linha de pesquisa, baseada em teoria dos jogos e simulações computacionais, aponta para conclusões semelhantes. A hipótese do contato intergrupal sugere que o preconceito tende a ser reduzido após experiências diretas e positivas com os grupos considerados diferentes. O distanciamento e a ausência de interação favorecem o crescimento de hostilidade.

Fonte: Teses e Lusosofia.