Como o número de Euler revela os limites e truques da memória humana moderna

Nem todo número irracional vive só nas fórmulas: o número de Euler virou teste para a mente humana. Com técnicas como Palácio da Memória e o Major System, pessoas conseguem decorar milhares de dígitos usando imagens surreais. A partir disso, cientistas explicam como memórias são formadas, distorcidas ou até criadas do zero. O cérebro mente, mas também guarda tudo — se você souber treinar do jeito certo.
Publicado por Maria Eduarda Peres em Ciência dia 12/05/2025

Nas margens entre a matemática pura e a neurociência aplicada, o número de Euler surge não como um símbolo apenas de interesse acadêmico, mas como ponto de partida para reflexões mais amplas sobre a capacidade humana de memorização. Muito além das fórmulas e dos logaritmos naturais, o valor aproximado de 2,71828 se transforma em instrumento de treinamento mental, em especial quando utilizado por indivíduos que desafiam os limites da memória.

Pontos Principais:

  • O número de Euler é irracional e possui infinitos dígitos não repetitivos.
  • Mike Anthony memorizou mais de 10 mil dígitos usando técnicas visuais.
  • A memória é dividida em curto e longo prazo, com diferentes funções e durações.
  • Técnicas como Palácio da Memória e Major System ajudam a fixar conteúdos complexos.

O número de Euler, assim como π, é classificado como irracional. Isso significa que ele possui infinitas casas decimais que não se repetem em padrão algum. Ainda que sua importância teórica seja reconhecida em áreas como a matemática financeira e os sistemas naturais de crescimento, a abordagem aqui proposta é outra: a capacidade de memorizá-lo. Esse desafio, aparentemente inócuo, levou brasileiros como Mike Anthony a decorar mais de 10 mil dígitos da constante, alcançando o Guinness Book.

A façanha, por si só, não tem valor prático imediato. Mas evidencia a existência de métodos de memorização estruturados, usados não só por recordistas, mas também por estudantes, profissionais e qualquer pessoa interessada em treinar sua capacidade cognitiva. A partir desse ponto, abre-se espaço para a compreensão de como a memória opera, suas falhas, seus tipos, seus limites e as estratégias desenvolvidas para ampliá-la.

Como funciona a memória humana

A memória é resultado de uma rede complexa de impulsos elétricos, disparados após um estímulo sensorial como leitura, som ou imagem. Ao serem recebidas, essas informações são convertidas e transmitidas por meio das sinapses, que interligam neurônios até atingirem diferentes regiões do cérebro. O hipocampo é o principal responsável por conduzir esse processo inicial.

A informação pode ser armazenada em diferentes locais, dependendo do tipo de memória ativada. Esse armazenamento também pode migrar ao longo do tempo, com as lembranças sendo realocadas dentro do cérebro. Uma memória pode ser evocada intencionalmente ou de forma involuntária, sendo acionada até mesmo em momentos de distração ou sono.

As memórias são divididas em dois grupos principais: de curto e longo prazo. Cada uma tem mecanismos distintos, durações variadas e funções específicas na nossa rotina. Ambas convivem simultaneamente, desempenhando papéis complementares no cotidiano.

Só que nem toda memória é confiável. Às vezes seu cérebro preenche as partes faltantes com coisas que nunca aconteceram - reprodução / canva
Só que nem toda memória é confiável. Às vezes seu cérebro preenche as partes faltantes com coisas que nunca aconteceram – reprodução / canva

Curto prazo, longo prazo e tipos de lembrança

A memória de curto prazo retém informações por segundos ou minutos, no máximo algumas horas. É o tipo de memória ativado ao lembrar temporariamente de um número de telefone, de uma instrução ou de uma frase recém-lida. Ela permite a continuidade de raciocínio em tarefas simples do dia a dia.

Já a memória de longo prazo é persistente e pode durar anos. Pode ser dividida em três categorias:

  • Episódica: lembra acontecimentos específicos, como uma viagem ou um aniversário.
  • Semântica: armazena o significado de palavras, gestos, fórmulas e outros conhecimentos abstratos.
  • Não declarativa: inclui memórias motoras, como a habilidade de andar de bicicleta.

A convivência entre os tipos de memória permite que o ser humano funcione de maneira integrada. Mesmo que falhas ocorram em uma das áreas, outras podem permanecer intactas. Esquecer o café da manhã não impede alguém de se lembrar de experiências da infância, por exemplo.

Falhas de memória e condições clínicas

As falhas de memória podem ser causadas por fatores físicos, neurológicos ou emocionais. Em casos de acidentes, é comum que ocorram apagões parciais, geralmente restritos a momentos anteriores ou posteriores ao impacto. A perda total de memória, como retratada em obras de ficção, é rara.

Doenças como Alzheimer afetam o hipocampo, prejudicando principalmente a memória de longo prazo. Fatores como predisposição genética, obesidade, colesterol alto e diabetes podem aumentar o risco. Em estágios mais avançados, o paciente pode esquecer eventos importantes e até pessoas próximas.

Outras condições também interferem na memória, especialmente de curto prazo. Casos como TDAH e dislexia dificultam o armazenamento de instruções recentes ou informações fonológicas. Essas condições não implicam um colapso da memória, mas indicam um funcionamento atípico que pode ser compensado com estratégias adequadas.

Memórias imprecisas e falsas lembranças

As memórias não são registros perfeitos. Elas passam por reconstruções cada vez que são evocadas. O cérebro armazena fragmentos e preenche lacunas com base em experiências anteriores, desejos ou narrativas sociais. Isso pode gerar lembranças que nunca ocorreram exatamente como se acredita.

Fenômenos como o efeito Mandela exemplificam a criação de falsas memórias coletivas. Muitas pessoas acreditam, por exemplo, que o desenho Dragon Ball Z foi interrompido por um plantão da Globo durante o 11 de setembro. Porém, registros da emissora mostram que a programação naquele momento era outra.

Outros efeitos também mostram distorções no funcionamento da memória. O déjà vu é a sensação de já ter vivido uma cena que, na verdade, é inédita. Já o jamais vu é o contrário: situações familiares que, repentinamente, parecem estranhas. Ambos são resultados de falhas na comunicação entre diferentes áreas do cérebro.

Parece loucura? Tem gente que consegue — e você pode também - reprodução / canva
Parece loucura? Tem gente que consegue — e você pode também – reprodução / canva

Técnicas de memorização aplicadas

Para desenvolver uma memória mais eficaz, existem métodos estruturados que podem ser utilizados por qualquer pessoa. Entre os mais conhecidos está o Link System, técnica em que se cria uma corrente de associações entre elementos. Uma imagem mental leva à outra, formando uma cadeia lógica baseada em conexões visuais.

Essa técnica pode ser combinada com a do Palácio da Memória, que consiste em associar itens a locais familiares, como a própria casa. Ao caminhar mentalmente pelos ambientes, cada ponto traz à mente um objeto ou conceito, facilitando a memorização por associação espacial e visual.

Outro método é o Major System, indicado para sequências numéricas. Nele, cada número é associado a sons consonantais, permitindo a conversão de dígitos em palavras. A sequência então é transformada em imagens surreais, que reforçam a fixação do conteúdo no cérebro.

Aplicações práticas e limites

Essas técnicas não são novas. Elas foram documentadas ao longo da história e aprimoradas em competições de memória. O caso de Mike Anthony, que memorizou 10 mil dígitos do número de Euler, é um exemplo do potencial que elas oferecem.

Apesar disso, o objetivo não é a utilidade imediata da informação decorada. Memorizar sequências longas serve como exercício cognitivo. A comparação com a atividade física é pertinente: assim como correr numa esteira não leva a lugar algum, decorar dígitos pode não servir para nada direto, mas fortalece o desempenho mental.

A prática constante dessas técnicas pode melhorar a concentração, a organização e a retenção de conteúdos em outras áreas da vida. Isso inclui desde compromissos cotidianos até aprendizados acadêmicos e profissionais.

Cuidados para preservar a memória

A memória também depende de hábitos de vida saudáveis. Boas noites de sono, alimentação equilibrada e prática de exercícios físicos são apontados como fatores que ajudam no bom funcionamento cerebral.

Técnicas de associação podem ser aplicadas para situações corriqueiras. Se há esquecimento recorrente de objetos pessoais, como a carteira, o ideal é posicioná-los junto a itens que você nunca esquece. Nomes de pessoas também podem ser fixados por meio de associações bizarras, facilitando a lembrança futura.

Embora estratégias cognitivas possam ajudar, é importante reconhecer os limites. Problemas persistentes de memória devem ser avaliados por profissionais de saúde, sem recorrer ao autodiagnóstico. A memória, como qualquer outra função do corpo, está sujeita a variações que exigem cuidado.

Conclusão

A memorização de números irracionais como Euler ou π pode parecer um exercício extremo, mas serve como janela para compreender o funcionamento da mente humana. A partir dessas experiências, a ciência revela os caminhos pelos quais as lembranças se formam, se distorcem e se perdem.

Os métodos apresentados mostram que, com treino e estrutura, é possível ampliar significativamente a capacidade de recordar informações. E mais: apontam para a importância de cultivar a saúde mental como parte fundamental da vida cotidiana.

A memória é um processo dinâmico, que vai além do simples ato de lembrar. Ela é construída, adaptada e influenciada por fatores internos e externos. Conhecer suas bases ajuda não só a protegê-la, mas também a usá-la com mais eficiência.

Fonte: Bbc, Artofmemory e Wikipedia.